Viajar a Bolivia: caos ou resistência cultural?

Viajar a Bolivia é um caos, dizem muitos viajantes. E não é difícil entender por quê: o transporte pode ser confuso, o tempo parece seguir um ritmo próprio, e certas dinâmicas culturais escapam à lógica do turista apressado. Mas talvez o que chamamos de caos seja, na verdade, uma outra ordem. Um outro tempo. Um outro modo de viver.

A Bolívia não é um país fácil de entender. E isso não é coincidência. Quando eu cheguei no país, não teve um dia sequer em que eu não pensei: por que a Bolívia é tão ela? Muito do que parece estranho para quem chega de fora é, na verdade, resistência viva, e essa resistência, apesar de linda, tem uma história sombria por trás.

Viajar a Bolívia indígena

Com mais de 60% da população se identificando como indígena, a Bolívia é o país com maior presença indígena proporcional das Américas. Mas não se trata só de número. O Estado boliviano se reconhece como plurinacional, ou seja, legitima a existência de múltiplos povos, línguas e formas de organização social dentro de seu território.

São 37 línguas oficiais. Duas capitais. Duas bandeiras. Uma delas, a Wiphala, representa os povos originários dos Andes e se vê hasteada nos prédios públicos, nas escolas, nos atos oficiais. Essa presença indígena não é folclore: é política, é estrutura, é cotidiano.

Não existe McDonald’s na Bolívia?

alvez o exemplo mais simbólico dessa resistência seja, justamente, o fracasso do McDonald’s na Bolívia. A rede chegou ao país nos anos 1990, abriu oito lojas em cidades como La Paz e Santa Cruz, e tentou se enraizar. No entanto, não conseguiu. Assim, em 2002, o McDonald’s fechou todas as unidades depois de anos de prejuízo.

A explicação para esse fenômeno não está na economia, mas, sim, na cultura. Na Bolívia, comer ainda é um ato social, um ritual, um tempo compartilhado. Portanto, a lógica de rapidez, padronização e lucro simplesmente não combina com os valores locais. Não é que as pessoas não comam hambúrguer, mas que elas não querem perder o sentido da refeição como parte da vida comunitária.

Dessa forma, a Bolívia se tornou o único país da América onde o McDonald’s saiu por vontade popular. Além disso, é o único no mundo a rejeitar a rede por motivos culturais, e não por sanções ou guerras.

Por que as mulheres ainda se vestem de cholita?

A recusa do mac donalds não foi só uma escolha interna. Ela também é fruto de uma exclusão geopolítica. Durante a colônia, a Bolívia foi um dos territórios mais explorados da América, a prata do Cerro Rico de Potosí abasteceu a Europa por séculos. Mas, quando o valor estratégico da região caiu, as potências deixaram de investir, tornando o país desinteressante e sem valor.

A Bolívia perdeu seu litoral após a Guerra do Pacífico e ficou cercada por montanhas, com relevo difícil e mercado interno limitado. Isso fez com que o país não interessasse mais às lógicas de dominação moderna, como interessavam o Brasil, a Argentina ou o Chile.

Paradoxalmente, foi esse desinteresse que abriu espaço para que estruturas ancestrais sobrevivessem. Enquanto outros países eram incentivados a se modernizar seguindo o modelo europeu ou estadunidense, a Bolívia seguiu um outro caminho. Um caminho mais autentico e com menos influencias, permitindo que tradições sejam orgulhosamente honradas até os dias de hoje, como as mulheres que seguem usando as vestimentas de suas ancestrais.

Viajar a Bolivia é um caos?

Eu entendi isso quando viajei pela Bolívia. No início, eu também chamava de caos. Me incomodava com os ônibus que atrasavam, com os mercados barulhentos, com o tempo que parecia se esticar. Mas com o tempo, percebi: o problema era minha expectativa. Minha régua.

O que eu chamava de desorganização era só um outro jeito de viver o tempo. Um jeito mais coletivo, mais conectado com o território, com os ciclos da terra e com as relações entre as pessoas.

E claro, essa percepção não chegou de forma suave. A dúvida me perseguiu por um bom tempo. Até que um dia, ali entre os Andes, eu entendi: o desconforto que eu sentia era, na verdade, um chamado para desaprender. Para repensar o que me ensinaram como normal.

Viajar a Bolivia: minha experiência

Foi na Bolívia que eu comecei a sentir orgulho de ser latino-americana. A enxergar com mais delicadeza os processos coletivos. A entender que progresso não é sinônimo de eficiência, e que sucesso não precisa seguir a mesma lógica em todo lugar.

A Bolívia me ensinou que existe força na lentidão. Que o que parece frágil, muitas vezes é o que mais resistiu. E que existe muita beleza em não ser compreendida de imediato.

Você também já teve a sensação de que a Bolívia é diferente demais? Já ouviu alguém dizer que é um lugar confuso, atrasado ou difícil? Talvez seja hora de olhar de novo, com mais escuta e menos expectativa.

Porque a Bolívia continua sendo ela. E isso, por si só, é um ato de resistência.

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